*Artigo escrito por Brunela Chiabai do Nascimento, advogada tributarista com formação pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários e membro do Ibef Academy.
Entre as muitas heranças que o Brasil insiste em conservar com esmero, poucas se mostram tão resilientes quanto o regime dos terrenos de marinha.
Criado no século XIX, sob inspiração imperial e influência do direito lusitano, consolidou-se como instrumento de domínio da União sobre a orla e sobreviveu à proclamação da República, à Revolução de 1930 e à Constituição de 1988, mantendo-se até hoje como um elegante vestígio patrimonial do absolutismo.
Mais impressionante do que sua longevidade é a naturalidade com que se aceita a ideia de que um imóvel adquirido por particulares, edificado com recursos próprios e mantido sem qualquer auxílio do poder público, deva, em razão de sua localização geográfica, submeter-se a uma curiosa forma de copropriedade estatal.
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Copropriedade, aliás, sem qualquer encargo para o ente público: a União não arca com despesa alguma, mas recebe, com a pontualidade de relojoeiro suíço, o que entende devido a título de foro e, nas transmissões, o sempre ilustre laudêmio.
Esse sistema se sustenta com base em uma linha imaginária traçada a partir de dados da maré de 1831. A referência técnica não impede que a União cobre, fiscalize, exija anuência e imponha restrições ao direito de propriedade.
Tudo isso sem prestar qualquer serviço correspondente, algo que nem o condomínio mais relapso ousaria fazer. Não se trata de contraprestação, tampouco de suporte. Trata-se apenas de um lembrete de que o Estado nunca está tão distante quanto aparenta.
Pilares
A justificativa para a existência do instituto se apoia em dois pilares recorrentes. De um lado, figura a alegada compensação pela perda do direito de uso de um bem que, embora ocupado e valorizado por terceiros, continuaria pertencendo à União.
Essa condição autorizaria a cobrança de uma fração do valor de mercado sempre que o imóvel fosse transmitido, mesmo sem que o Estado o tenha construído, utilizado ou pretendido alienar.
De outro, invoca-se o trinômio da segurança nacional, da preservação ambiental e do ordenamento da ocupação costeira, atribuindo-se à faixa de 33 metros a função estratégica de proteger o país com fortalezas, alfândegas e vigilância ambiental.
Trata-se de um modelo em que a titularidade estatal opera como bastião simbólico, cuja presença concreta raramente ultrapassa o zelo pela arrecadação.
Na prática, o que se impõe ao proprietário é uma série de entraves que comprometem a livre disposição do imóvel.
Alterações estruturais, reformas, transmissões e até regularizações que seriam ordinárias em qualquer outro bem estão sujeitas à anuência prévia da Secretaria do Patrimônio da União.
Sem essa chancela, o direito de propriedade permanece suspenso, como se o titular precisasse, reiteradamente, reafirmar sua condição de “dono autorizado”.
Enquanto se proclama, nos discursos oficiais, o compromisso com a modernização do Estado e a valorização da iniciativa privada, resiste-se bravamente à ideia de extinguir esse instituto que combina feudalismo com burocracia cartorial.
Propriedades
Preserva-se, na prática, uma relação jurídica que transforma o proprietário em concessionário de si mesmo.
E assim se perpetua a ficção de que essa estrutura seria essencial à proteção do patrimônio público, ainda que esse “patrimônio” consista, muitas vezes, apenas na lembrança de que, um dia, ali passavam as águas da maré.
No fim, o que se tem é um modelo que transforma o direito de propriedade em uma ficção protocolada, na qual o domínio e a titularidade plena são sempre relativos, e a segurança jurídica termina no pé da página.
A terra é sua, mas com ressalvas. O imóvel é seu, mas com limites. A propriedade é sua, mas com um pequeno asterisco, quase invisível, mas suficiente para lembrar que, nesse trecho do território nacional, até a liberdade de ser dono vem com nota de rodapé e observações que a restringem.
Este texto expressa a opinião do autor e não traduz, necessariamente, a opinião do Instituto Brasileiro de Executivos de Finanças do Espírito Santo.