Sempre que falo de gastronomia capixaba, tem um elemento que aparece antes mesmo do peixe, do urucum ou da cebola: a panela de barro. Esse utensílio, que há séculos molda o sabor da nossa moqueca e da torta capixaba, carrega um pedaço da alma do Espírito Santo. E, recentemente, tive o privilégio de passar um dia inteiro conhecendo de perto essa tradição e as mãos que a mantêm viva.
A ida fez parte do projeto IdentidadES, da Rede Vitória em parceria com o Sebrae/ES, que mostra como produtos com Indicação Geográfica (IG) transformam vidas, territórios e economias no estado. E, no caso de Goiabeiras, posso dizer que a transformação vem do chão, mais especificamente do Vale do Mulembá, de onde é retirado o barro que dá origem a cada peça.
O dia começou cedo, acompanhando o trabalho de Ronaldo Corrêa, um dos “tiradores de barro”. Entre árvores e cantos de passarinho, ele me contou que gosta de trabalhar ouvindo seu radinho, sozinho, extraindo com cuidado a matéria-prima que vai virar panela. “Se não tiver esse cuidado, não tem tradição”, disse. E eu entendi: o sabor da moqueca começa ali.
No galpão das paneleiras, o cenário é de poesia e resistência. Vi Berenícia Corrêa, presidente da associação, observar o movimento enquanto me explicava que cada panela é um elo entre passado e futuro. A argila chega ainda crua, é pisada, cortada, molhada e limpa manualmente. Cada raiz, pedra ou vidro encontrado é retirado. A modelagem é feita à mão, peça por peça, seguida de um polimento com pedra de rio até ganhar forma e brilho.
Na parte externa do galpão, encontrei Lucineia Jesus da Silva, responsável pela etapa final: a queima. “Não tem tempo certo. A gente sabe pelo olhar”, contou, enquanto me mostrava como o tom avermelhado indica que a panela está pronta para receber a pintura feita com casca de mangue, que lhe dá a cor escura e inconfundível.
Lucineia, baiana que se tornou capixaba de coração, criou cinco filhos com o trabalho das panelas e resume bem o sentimento: “A panela é como um filho. Acompanho desde o barro bruto até virar utensílio na mesa do capixaba”, disse.
O selo de Indicação Geográfica, concedido pelo INPI em 2011, garante que só as panelas feitas ali, seguindo as técnicas tradicionais e usando o barro do Mulembá, possam levar o nome “Goiabeiras”. Foi a primeira vez que um artesanato recebeu IG no Brasil. Hoje, essas peças não só equipam cozinhas pelo país, mas também atraem turistas, fortalecem a economia local e protegem um saber que vem de muitas gerações.
E não é só sobre cozinha. É sobre identidade. Como disse Berenícia, entre uma risada e outra: “Não existe moqueca capixaba sem panela de barro. Moqueca é capixaba, o resto é peixada”.
Mas, ao invés de levar a minha nova panela para casa, fiz melhor: levei até o restaurante Atlântica, em Vila Velha, referência no preparo da moqueca capixaba, para inaugurá-la. E, sob o comando do chef Ricardo Bodevan, ela recebeu seu primeiro banho de azeite e foi batizada com uma moqueca que, além de deliciosa, carregava o peso e o sabor de uma história centenária.
No próximo prato que você comer em uma panela de barro, saiba: ali tem muito mais que comida. Tem barro, fogo, mãos e uma tradição inteira servida à mesa.