InteligĂȘncia Artificial e seus riscos no ambiente jurĂ­dico InteligĂȘncia Artificial e seus riscos no ambiente jurĂ­dico InteligĂȘncia Artificial e seus riscos no ambiente jurĂ­dico InteligĂȘncia Artificial e seus riscos no ambiente jurĂ­dico
Foto: Freepik
Foto: Freepik

Em um ambiente no qual a Inteligência Artificial (IA) já integra o cotidiano das pessoas, questões que antes exigiam uma visita ao cartório ou ao escritório de advocacia hoje parecem facilmente solucionáveis com alguns cliques ou comandos de voz. A indagação que se impõe é: até que ponto essa facilidade é segura?

A Constituição Federal, em seu art. 5.º, LXXIII, autoriza que qualquer cidadão proponha, sem a necessidade de representação por advogado, a chamada ação popular, destinada à proteção do patrimônio público, do meio ambiente e da moralidade administrativa.

Igualmente, o habeas corpus, nos termos do art. 5.º, LXVIII, da CF, e do art. 654, caput, do CPP, pode ser impetrado diretamente por qualquer pessoa, inclusive em nome de terceiros, sem necessidade de advogado.

Nos Juizados Especiais Cíveis, também prevê essa possibilidade para causas de até vinte vezes o valor do salário mínimo. Da mesma forma, na Justiça do Trabalho, o cidadão pode pleitear tutela jurisdicional diretamente, conforme prevê o art. 791 da CLT.

Esse fenômeno é denominado ius postulandi, ou seja, o poder de postular em Juízo, ainda que sem a intermediação de uma advogado.

Embora legítimo, trata-se de um instituto cuja utilização exige extremo cuidado e muita cautela.

Inteligência Artificial e o processo judicial

O processo judicial não é simples: está cercado de normas, prazos e formalidades que, se ignorados, podem causar prejuízos severos.

Um erro na forma de apresentar um pedido, no cálculo de um valor ou na escolha do tipo de ação pode comprometer direitos importantes.

Da mesma forma, a celebração de um negócio jurídico, como por exemplo, um contrato, por mais simples que possa parecer, exige um prévio conhecimento sobre normas jurídicas, diplomas e hermenêutica.

IA não substitui conhecimento técnico

Apesar da crescente sofisticação da IA — capaz de redigir documentos, sugerir argumentos e responder a perguntas complexas —, ela não substitui o conhecimento técnico e a experiência de um profissional do Direito.

É preciso ter presente que a IA, em regra, entrega a resposta que o usuário deseja ouvir — não necessariamente a mais adequada sob o ponto de vista jurídico.

Por exemplo, se alguém pergunta “como processar uma empresa por danos morais?”, a plataforma pode apresentar um roteiro genérico, sem considerar se há, de fato, base legal para tanto.

A IA parte do pressuposto de que a dúvida é legítima e tenta satisfazer a expectativa do usuário, ainda que os fundamentos estejam ausentes ou mal formulados. Além disso, a IA não domina interpretativamente os conceitos jurídicos.

Inteligência Artificial não se baseia em análise hermenêutica

Sua operação se baseia em padrões de linguagem e correlação de dados — não em análise hermenêutica. Termos como “nulidade absoluta”, “coisa julgada material”, “ônus da prova” ou “responsabilidade solidária” podem ser empregados fora de contexto ou de forma imprecisa.

Um erro na aplicação desses conceitos pode gerar efeitos jurídicos indesejados, inclusive prejuízos patrimoniais.

Um contrato elaborado por ferramenta automatizada, ou mesmo retirado da internet, pode conter cláusulas nulas, abusivas ou omissões relevantes que passam despercebidas pela pessoa, além de não considerar particularidades daquele caso.

Um pedido judicial baseado em instruções geradas automaticamente pode ser indeferido, ensejar a extinção do processo sem julgamento do mérito ou até mesmo acarretar a perda de um direito.

Ferramentas úteis na organização de ideias

Ferramentas de IA podem ser úteis para organizar ideias, estruturar documentos ou acelerar pesquisas — desde que sob a supervisão de um profissional habilitado.

A atuação do advogado permanece imprescindível para interpretar normas, avaliar riscos, orientar estratégias e proteger os interesses do cliente com segurança jurídica.

Quando se trata de direitos, deveres e consequências reais, nenhuma máquina substitui a responsabilidade, a sensibilidade e a inteligência humana aplicadas à prática do Direito.
O problema é que esses instrumentos não levam em conta as particularidades de cada caso, nem os requisitos legais que garantem sua validade.

Termos genéricos, cláusulas desequilibradas ou omissões importantes podem gerar nulidades e longas disputas judiciais.

O advogado não é apenas alguém que interpreta leis. Ele compreende o sistema jurídico, analisa riscos, orienta estratégias e defende os interesses do cliente com base em conhecimento técnico e sensibilidade humana — algo que nenhuma máquina consegue replicar plenamente.

Ao buscar orientação jurídica com quem não tem formação específica, o cidadão assume o risco de perder prazos, renunciar a direitos ou, pior, consolidar obrigações que não deveria assumir.

Algoritmos treinados para responder perguntas jurídicas

Cada vez mais, algoritmos são usados para responder perguntas jurídicas e até simular decisões judiciais.

No entanto, trata-se de tecnologias treinadas para detectar padrões e repetir estruturas — não para realizar interpretações complexas e ponderações jurídicas baseadas em valores constitucionais, princípios ou nas circunstâncias do caso concreto.

As máquinas não compreendem o que significam “justiça”, “dignidade da pessoa humana” ou “equidade”.

Operam sobre dados objetivos, estatísticas e modelos probabilísticos — mas sem senso crítico.

Há também um risco técnico: os sistemas de IA produzem respostas a partir de dados de entrada (inputs); assim, qualquer erro, omissão ou viés nesses dados pode comprometer o resultado gerado. Na seara jurídica, em que a linguagem é técnica e específica, esse risco se intensifica.

Falta de transparência dos algoritmos

Outro ponto sensível diz respeito à falta de transparência dos algoritmos. Em muitos casos, nem mesmo os desenvolvedores conseguem explicar por que uma IA tomou determinada decisão.

No Direito, isso representa um problema ético e jurídico grave, pois a fundamentação das decisões — inclusive as simuladas ou influenciadas por IA — é elemento essencial à legalidade, ao contraditório e à ampla defesa.

Portanto, a IA pode ser usada como ferramenta auxiliar — jamais como substituta do discernimento humano ou da atuação jurídica qualificada.

Mais do que nunca, é preciso compreender que, no Direito, os dados não são suficientes: é preciso interpretação, sensibilidade, investigação, prognose e responsabilidade.

Tecnologia é aliada da Justiça se for usada com consciência

A tecnologia é uma aliada poderosa da Justiça, mas deve ser usada com consciência. Questões jurídicas, por mais simples que pareçam, envolvem direitos, deveres e consequências reais.

E, quando se trata de proteger o patrimônio, a liberdade ou a dignidade, o melhor é sempre contar com o auxílio de um(a) especialista: o advogado.

Sublinhe-se: a inteligência artificial responde — mas nem sempre acerta.

FlĂĄvio Cheim Jorge

Colunista

Advogado nas ĂĄreas do direito cĂ­vel, empresarial e administrativo, Ă© Mestre e Doutor pela PUC/SP, sendo ainda, Professor Titular na Universidade Federal do EspĂ­rito Santo (Ufes). JĂĄ exerceu o cargo de Juiz Eleitoral Titular – classe dos Juristas - no Tribunal Regional Eleitoral do EspĂ­rito Santo (TRE-ES)

Advogado nas ĂĄreas do direito cĂ­vel, empresarial e administrativo, Ă© Mestre e Doutor pela PUC/SP, sendo ainda, Professor Titular na Universidade Federal do EspĂ­rito Santo (Ufes). JĂĄ exerceu o cargo de Juiz Eleitoral Titular – classe dos Juristas - no Tribunal Regional Eleitoral do EspĂ­rito Santo (TRE-ES)