Direito

Judicialização da saúde e a responsabilidade da administração pública

O que está em jogo é o equilíbrio. O direito individual à saúde não pode ser negado, mas tampouco pode inviabilizar o direito coletivo

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martelo de juiz
Foto: Canva

A judicialização da saúde não é mais um episódio isolado. É um fenômeno que molda a realidade do Sistema Único de Saúde (SUS) e redefine as fronteiras entre o Poder Judiciário e a administração pública.

De um lado, representa a possibilidade concreta de um cidadão obter, por decisão judicial, um medicamento ou tratamento essencial à sua sobrevivência. De outro, gera sobrecarga para os tribunais e desorganização financeira para gestores públicos.

Os números dão a dimensão desse paradoxo. Segundo o IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), em 2023 os estados brasileiros destinaram 32,9% de seus gastos com medicamentos a demandas judiciais.

Apenas em 2024, o Ministério da Saúde desembolsou R$ 3,2 bilhões em decorrência de ações judiciais, entre empenhos do próprio ano e ressarcimentos a estados e municípios.

Segundo dados do CNJ, existem em curso aproximadamente 869.271 ações judiciais relacionadas à saúde, sendo certo que entre 2020 e 2024, os processos judiciais mais que dobraram.

No Estado do Espírito Santo, segundo dados da Secretaria Estadual de Saúde, em 2022, existiam em curso 10.247 ações judiciais relativa a esse tema.

Em síntese, a judicialização salva vidas, mas pode comprometer políticas estruturantes, que dependem de previsibilidade orçamentária. Eis o dilema central: como garantir o direito fundamental de cada paciente sem inviabilizar o direito coletivo à saúde?

O papel do CNJ e do Fonajus

Esse dilema já foi reconhecido pelas instituições competentes. Desde 2010, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) acompanha o fenômeno por meio do Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde (Fonajus).

Criado com a missão de orientar magistrados e articular atores públicos, o Fonajus implementou instrumentos técnicos como os Núcleos de Apoio Técnico (NatJus) e o sistema e-NatJus, que oferecem pareceres médico-científicos para subsidiar decisões judiciais.

A iniciativa mostra que o CNJ tem buscado qualificar a atuação do Judiciário, mas também deixar claro que a judicialização não deve substituir a responsabilidade da Administração Pública em estruturar o SUS de forma eficiente e transparente.

A responsabilidade da administração pública

Não se pode perder de vista que a explosão de demandas judiciais é, em larga medida, sintoma de falhas administrativas. Quando gestores adiam a atualização de protocolos clínicos, omitem critérios de prioridade ou não asseguram acesso equitativo, transferem para o Judiciário a responsabilidade que lhes cabia.

Essa omissão cria um ciclo perverso: milhares de ações individuais desorganizam o orçamento, gerando ainda mais dificuldades de planejamento e ampliando a sensação de ineficiência do sistema.

Portanto, a crítica não deve recair sobre juízes que concedem liminares, mas, sobretudo, sobre governos que não planejam, não previnem e não oferecem soluções administrativas para conflitos previsíveis.

O exemplo capixaba: boas práticas reconhecidas

No Espírito Santo essa consciência tem resultado em respostas concretas. Em 2021, a Secretaria de Saúde criou a Gerência de Demandas Judiciais em Saúde (GEDEJ), responsável por monitorar intimações e oferecer subsídios técnicos ao SUS. Em parceria com a Procuradoria-Geral do Estado, lançou-se o programa “SUS + Justiça”, que inclui o Laboratório de Direito à Saúde e Inovação.

Em 2024, o CNJ reconheceu o esforço capixaba ao premiar duas iniciativas como boas práticas nacionais: o Centro de Negociações Preventivas em Saúde (CNPS), voltado à solução extrajudicial de conflitos, e o Lab SUS+Justiça, que utiliza ciência de dados para identificar tendências de judicialização e aprimorar a gestão orçamentária.

Essas experiências mostram que o Espírito Santo tem se posicionado como referência na busca por soluções administrativas, reduzindo a dependência exclusiva do Judiciário para resolver conflitos em saúde.

O movimento não é exclusivo do Espírito Santo. Minas Gerais estruturou o Núcleo de Atendimento à Judicialização da Saúde (NAJS), e em Alagoas, o Núcleo Interinstitucional de Judicialização da Saúde (NIJUS) promove a cooperação entre Judiciário, Ministério Público, Defensoria e gestores, em busca de soluções conjuntas e mais rápidas.

Impactos e dilemas: o que está em jogo

Não se pode ignorar que a judicialização é, muitas vezes, a única saída para o cidadão que enfrenta a recusa de um tratamento vital. Casos emblemáticos de fornecimento de medicamentos oncológicos, órteses e próteses já garantiram sobrevida e dignidade a milhares de brasileiros.

No entanto, quando recursos vultosos são direcionados a demandas individuais — algumas, inclusive, de tratamentos experimentais ou de alto custo —, compromete-se o investimento em políticas preventivas e coletivas.

O resultado é um sistema menos justo, em que quem consegue litigar tem mais chances de acesso, enquanto outros ficam à margem.

O dilema, portanto, não é entre “judicializar” ou “não judicializar”, mas entre fortalecer ou não a administração pública. Se os gestores cumprirem seu papel, a judicialização será residual e equilibrada. Se permanecerem omissos, o Judiciário seguirá sobrecarregado e o SUS seguirá vulnerável.

Equilíbrio e responsabilidade

Em última análise, o que está em jogo é o equilíbrio. O direito individual à saúde não pode ser negado, mas tampouco pode inviabilizar o direito coletivo. O Judiciário deve ser guardião da Constituição, mas não protagonista da formulação de políticas públicas.

A verdadeira resposta está na responsabilidade administrativa: planejar, prevenir, atualizar protocolos, dialogar com a sociedade e criar canais extrajudiciais de solução. Iniciativas como as do Espírito Santo, de Minas Gerais e de Alagoas apontam o caminho.

Mais do que nunca, é preciso compreender que a judicialização é efeito, não causa. E a causa está na omissão estatal.

O caminho é claro: mais gestão, mais técnica, mais diálogo. Só assim será possível assegurar a todos os brasileiros aquilo que a Constituição prometeu: saúde como direito de todos e dever do Estado.

Flávio Cheim Jorge

Colunista

Advogado nas áreas do direito cível, empresarial e administrativo, é Mestre e Doutor pela PUC/SP, sendo ainda, Professor Titular na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Já exerceu o cargo de Juiz Eleitoral Titular – classe dos Juristas - no Tribunal Regional Eleitoral do Espírito Santo (TRE-ES)

Advogado nas áreas do direito cível, empresarial e administrativo, é Mestre e Doutor pela PUC/SP, sendo ainda, Professor Titular na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Já exerceu o cargo de Juiz Eleitoral Titular – classe dos Juristas - no Tribunal Regional Eleitoral do Espírito Santo (TRE-ES)