Direito

Muitas ações, pouco cuidado: a diferença entre buscar Justiça e abusar dela

Entenda como a busca por Justiça se transformou em litigância abusiva no Brasil e os desafios de equilibrar direitos e abusos no Judiciário

Muitas ações, pouco cuidado: a diferença entre buscar Justiça e abusar dela

A Constituição Federal de 1988 inaugurou, no Brasil, uma ordem jurídica marcada pela consagração de direitos fundamentais de feição social.

Não se tratou apenas de uma Carta política, mas de um verdadeiro programa normativo voltado à efetivação de garantias materiais, que tinha como objetivo era reduzir desigualdades históricas e assegurar dignidade.

A partir dela, uma série de leis foi editada, reforçando essa vocação. Surgiram, a seu reboque, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Estatuto do Idoso, o Código de Defesa do Consumidor, entre tantos outros.

Cada um deles, a seu modo, ampliou a esfera de proteção dos indivíduos, estimulando — de forma direta ou indireta — a busca pelo Poder Judiciário como instância de concretização desses direitos.

Esse movimento legislativo veio acompanhado de mudanças institucionais igualmente significativas.

Os Juizados Especiais, criados em diversos ramos da jurisdição — cível, criminal, da fazenda, federal —, facilitaram sobremaneira o acesso à Justiça, oferecendo um procedimento mais célere e simplificado.

Paralelamente, o país assistiu à multiplicação exponencial de cursos de Direito: hoje, são mais de mil em funcionamento, formando milhares de bacharéis a cada ano, muitos dos quais habilitados, após o exame de ordem, a exercer a advocacia.

O resultado foi um aumento expressivo do número de profissionais aptos a litigar, alimentando um cenário de judicialização intensa.

Não se pode ignorar, ainda, o contexto social que acompanhou esse processo. O êxodo das áreas rurais para os centros urbanos, especialmente nas últimas décadas, produziu uma sociedade de massa, fortemente concentrada nas cidades.

E uma sociedade de massa tende a gerar conflitos também de massa. Serviços padronizados — como telefonia, serviços bancários, assistência social pública, planos de saúde, transporte, energia elétrica — passaram a ser consumidos em larga escala, e, com eles, surgiram também litígios igualmente em larga escala, muitas vezes rigorosamente semelhantes.

Assim, a cultura de reconhecimento de direitos, somada à massificação das relações sociais e à multiplicação dos operadores jurídicos, contribuiu decisivamente para a formação de um ambiente de litigiosidade em larga escala no Brasil.

A par desse contexto histórico e social, surgiu no cenário contemporâneo uma preocupação cada vez maior com o fenômeno daquilo que se passou a chamar de litigância abusiva.

Trata-se de fenômeno marcado pela propositura de demandas repetitivas, artificiais, fraudulentas, padronizadas e sem qualquer lastro (fático ou jurídico), ajuizadas em série com a finalidade de obter vantagens econômicas pelo volume ou de exercer pressão sobre réus.

Longe de significar mera multiplicidade de ações legítimas, revela-se quando a litigância deixa de ser instrumento de defesa de direitos para se tornar mecanismo de exploração indevida do Poder Judiciário.

Esse tema tem sido objeto de constante debate e referência entre os operadores do direito. O Conselho Nacional de Justiça, por exemplo, editou normas abordando essa questão, tais como as Recomendações n. 127/2022, 129/2022 e a 159/2024.

A intenção é louvável: preservar a boa-fé processual e impedir que o Judiciário seja capturado por interesses meramente oportunistas.

Não obstante, a aplicação de tais instrumentos requer cautela, sob pena de se criar um filtro rígido que, em vez de coibir abusos, venha a se transformar numa barreira ilegítima ao direito constitucional de acesso à Justiça, especialmente em situações em que milhares de consumidores ou cidadãos sofrem lesões semelhantes e recorrem dignamente ao Judiciário.

O desafio, portanto, está em promover um equilíbrio: combater a litigância abusiva sem deslegitimar a litigiosidade de massa, que é fruto cultural advindo de nosso desenvolvimento político e social. Esse equilíbrio exige sensibilidade institucional.

É preciso distinguir o joio do trigo: separar as empresas que reiteradamente descumprem normas e provocam litígios em escala, daquelas que atuam com seriedade; diferenciar os advogados que exercem a profissão com ética e compromisso, dos que exploram sua honrada atividade como verdadeiro modelo de negócio antiético.

Sob a ótica empresarial, a distinção é igualmente relevante. Não se pode colocar no mesmo patamar a empresa que, diante de um acidente de consumo, adota um plano de ação responsável — prestando atendimento, orientando consumidores, comunicando autoridades e buscando soluções mitigadoras — e aquela que se torna litigante habitual, sistematicamente desobedecendo normas de agências reguladoras e multiplicando litígios em série.

A primeira demonstra compromisso institucional com a boa-fé e com a prevenção de conflitos; a segunda, ao contrário, alimenta e utiliza a violação de direitos, como estratégia empresarial.

A resposta jurisdicional precisa ser calibrada para reconhecer tais diferenças, sob pena de se promover uma generalização injusta que desestimula as boas práticas e banaliza o conceito de litigância abusiva.

Não se pode, em suma, tratar toda multiplicidade de ações como abuso ou ilícito. A compreensão desse tema exige, sim, controle contra distorções, mas também pede vigilância contra soluções fáceis que confundam abuso com exercício legítimo do direito de ação.

Cabe ao Judiciário, e sobretudo à advocacia, zelar para que esse equilíbrio seja mantido, sob pena de que, em nome do combate a um suposto abuso, se esvazie o acesso efetivo à Justiça — justamente aquilo que a ordem constitucional buscou assegurar.

Flávio Cheim Jorge

Colunista

Advogado nas áreas do direito cível, empresarial e administrativo, é Mestre e Doutor pela PUC/SP, sendo ainda, Professor Titular na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Já exerceu o cargo de Juiz Eleitoral Titular – classe dos Juristas - no Tribunal Regional Eleitoral do Espírito Santo (TRE-ES)

Advogado nas áreas do direito cível, empresarial e administrativo, é Mestre e Doutor pela PUC/SP, sendo ainda, Professor Titular na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Já exerceu o cargo de Juiz Eleitoral Titular – classe dos Juristas - no Tribunal Regional Eleitoral do Espírito Santo (TRE-ES)