Resenha da obra "Justiça: O que é fazer a coisa certa" de Michael Sandel

Michael J. Sandel (1953) é um filósofo, escritor e professor universitário estadunidense muito conhecido pelo livro Justiça: O que é fazer a coisa certa, publicado em 2009 e baseado em seu curso Justice, ministrado na Universidade de Harvard, da qual é professor desde 1980 na cátedra de Filosofia Política.

A obra, de subtítulo O que é fazer a coisa certa, foi muito vendida no mundo todo (no Brasil, por exemplo, encontra-se em sua 13ª edição) e teve amplo reconhecimento, seja dentro da comunidade acadêmica ou fora dela – o que muito se deve à sua linguagem acessível. Trazendo discussões que se inserem nos campos da ética e da política, Sandel questiona a complexidade das decisões éticas em um contexto contemporâneo (para tanto, utiliza exemplos que vão desde Os Simpsons até Michael Jordan). Seu principal objetivo é discutir teorias éticas fundamentais e suas aplicações práticas, promovendo uma reflexão crítica sobre a moralidade nas interações sociais e políticas.

Pode-se dizer que o principal mérito do livro reside na capacidade de conectar, por meio de exemplos históricos bem conhecidos e narrativas pessoais envolventes, pressupostos fundamentais relacionados à justiça, presentes na teoria política, ao universo cognitivo dos leitores. Para entender os temas centrais da teoria política abordados por Sandel, o leitor não precisa ter um conhecimento aprofundado dos sistemas de filosofia política de Aristóteles, Kant, Bentham, Stuart Mill, John Rawls, Robert Nozick, entre outros. Na verdade, não é necessário ter qualquer familiaridade prévia com esses autores ou mesmo com filosofia; é suficiente ter uma sensibilidade para as questões prementes do mundo contemporâneo, que refletem as escolhas pessoais de cada indivíduo e de outros em sua vida social, como aborto, imigração, tributação, casamento entre pessoas do mesmo sexo, limites morais do mercado, políticas de cotas, gestação de substituição, suicídio assistido etc., questões que naturalmente perpassam a vida humana.

O livro é organizado em dez capítulos, pronunciados alguns deles no eixo de um filósofo clássico (por exemplo, Kant e Aristóteles, nos capítulos 5 e 8, respectivamente). O propósito último é responder à questão veiculada pelo título: “O que é fazer a coisa certa?”, ou, em outras palavras: “O que é justiça?”, questões tais que só podem ser respondidas à maneira tradicional legada pelos grandes filósofos e seus sistemas éticos. Os capítulos, igualmente, são organizados em torno de dilemas morais que fazem o leitor refletir sobre as suas próprias crenças e valores. Por exemplo, ele (o autor) apresenta situações nas quais são exigidas decisões difíceis, como o famoso dilema do trem desgovernado, apresentado já no primeiro capítulo.

A Ética como Debate Público na Obra de Sandel

A obra de Sandel se inicia com a premissa de que a ética não é apenas uma questão de preferências pessoais, mas um campo que deve ser debatido publicamente. Como o autor diz no encerramento do primeiro capítulo: “Quando a reflexão moral se torna política, quando pergunta que leis devem governar nossa vida coletiva, precisa ter alguma ligação com o tumulto da cidade, com as questões e os incidentes que perturbam a mente pública.” Sandel argumenta que as decisões morais são frequentemente influenciadas por uma miríade de fatores, incluindo valores culturais, normas sociais, considerações individuais, entre outras coisas. Ele propõe que a ética deve ser entendida como um diálogo coletivo, onde diferentes perspectivas são confrontadas e discutidas, ou, em suas palavras: “[…] a reflexão moral não é uma busca individual, e sim coletiva. Ela requer um interlocutor – um amigo, um vizinho, um camarada, um compatriota.”

Após delimitar o alcance e os objetivos de sua obra no capítulo 1, Sandel, ao longo do restante da obra, explora diversas teorias éticas, começando pelo utilitarismo (capítulo 2), responsável por defender que a ação correta é aquela que maximiza a felicidade ou o bem-estar para o maior número de pessoas; assim, qualquer ato que produza prazer e felicidade para um número maior de pessoas é considerado justificável, mesmo que cause dor e sofrimento a outros. A ação correta é sempre aquela que maximiza a utilidade do ato. Nesse contexto, para os utilitaristas, seria aceitável, por exemplo, empurrar um homem corpulento de uma ponte. Sandel associa essa teoria moral a Jeremy Bentham (1748–1832) e John Stuart Mill (1806–1873), dois autores-símbolo da corrente. O professor de Harvard critica essa abordagem por sua tendência a desconsiderar os direitos individuais em prol do bem coletivo; para tanto, ele explora as suas limitações através de exemplos práticos, como a questão da justiça em situações de emergência.

A Ética Deontológica e a Filosofia de Immanuel Kant

Em seguida, o autor aborda a ética deontológica, que enfatiza a importância de princípios e deveres morais, independentemente das consequências. Sandel utiliza a filosofia do pai do idealismo alemão, Immanuel Kant, para discutir a ideia de que certas ações são moralmente obrigatórias, independentemente de seus resultados. Essa perspectiva é contrastada com o utilitarismo, destacando a tensão entre a moralidade baseada em regras e a moralidade baseada em resultados.

Outro aspecto central da obra é a crítica ao liberalismo. Em determinado momento, Sandel investiga se o liberalismo é compatível com a promoção da justiça, considerando que ele prioriza a liberdade e os direitos individuais em detrimento da busca por uma equidade social. A sua conclusão é que o liberalismo tende a separar a ética da política, promovendo uma visão de indivíduos como agentes autônomos que tomam decisões baseadas em interesses pessoais. Ele argumenta que essa visão ignora a dimensão comunitária da moralidade e a interdependência dos indivíduos dentro de uma sociedade.

Sandel também discute temas atuais, tais como a justiça social, a disparidade econômica e os dilemas éticos relacionados à biotecnologia e à política pública. Ele emprega exemplos reais, como o debate acerca da regulamentação da eutanásia e a alocação de recursos em períodos de crise, para demonstrar como as teorias éticas podem ser empregadas em questões concretas.

No decorrer da obra, o filósofo estadunidense destaca a relevância do envolvimento cívico e do debate público na construção de uma sociedade ética. Ele incentiva os leitores a não só ponderarem sobre suas próprias convicções, mas também a participarem ativamente das discussões sobre o que significa “agir corretamente” em um mundo plural e variado.Em suma, pode-se dizer que O que é fazer a coisa certa é uma obra que não apenas introduz conceitos fundamentais da ética, mas também desafia os leitores a considerar a moralidade como um aspecto intrinsecamente ligado à vida pública e à convivência social, a partir de todas as complexidades da moralidade e da ética em nossas decisões cotidianas. Sandel propõe-nos que a ética deve ser uma preocupação coletiva, incentivando um diálogo aberto sobre as questões que moldam nossas vidas e sociedades. Para fazê-lo, ele se baseia em autores clássicos da filosofia moral, como Kant e Aristóteles, e exemplos didáticos para traduzir as suas ideias, como os casos do ex-jogador de basquete Michael Jordan e do seriado Os Simpsons. O livro, assim, é excelente para os iniciantes no estudo da ética e que desejam aprender um pouco da tradição que os filósofos morais nos legaram. Façamos, pois, o que é certo!

Gustavo Neris

Colunista

Associado do Instituto Líderes do Amanhã

Associado do Instituto Líderes do Amanhã