Prefeitura não dá parecer e “Eu escolhi esperar” vai virar lei em Vitória

A Prefeitura de Vitória devolveu, sem parecer técnico, o projeto de lei que institui o programa “Eu escolhi esperar” nas unidades de saúde e escolas do município. O projeto, que foi aprovado pela Câmara, será promulgado e publicado (vira lei) nesta segunda-feira (17), durante uma sessão extraordinária.

O projeto foi aprovado no dia 15 de dezembro e seguiu para o crivo da Prefeitura de Vitória. Caberia ao Executivo, com base em pareceres técnicos, sancionar ou vetar o projeto. Porém, quase um mês depois, no último dia 10, a prefeitura devolveu o projeto, sem nenhum parecer ou decisão. “Quando a prefeitura devolve sem parecer, significa que não sancionou e nem vetou. Então, o próximo passo é promulgar e publicar e farei isso na sessão de segunda-feira com a presença do pastor Nelson Júnior”, disse o presidente da Câmara de Vitória, Davi Esmael, que é o autor do projeto.

Por nota, a prefeitura explicou o que aconteceu: “A Prefeitura de Vitória informa que o referido projeto de lei foi devolvido nesta segunda-feira (10) para a Câmara de Vereadores. O prazo constitucional de 15 dias úteis do projeto transcorreu sem manifestação dos órgãos da Prefeitura Municipal de Vitória, razão pela qual foi devolvido à Câmara Municipal de Vitória”. O motivo, porém, do projeto não ter contado com um parecer técnico e nem com uma decisão (veto ou sanção), não foi informado.

Nos bastidores, o que se especula é que, qualquer que fosse a manifestação da prefeitura, ela seria vista de forma polêmica. O fato de não ter sancionado o projeto, sinaliza que, no mínimo, não houve consenso, entre os órgãos da prefeitura, sobre ele. Ou até que pudesse ter chegado ao entendimento de que a matéria deveria ser vetada.

Mas vetar, porém, deixaria o prefeito Lorenzo Pazolini numa saia-justa. O projeto é de autoria do presidente da Câmara, Davi Esmael, aliado de Pazolini e, por vezes, mais defensor da gestão que o líder do prefeito no Legislativo. Fora que é um projeto encampado por algumas lideranças evangélicas, principalmente da ala conservadora. Embora não se assuma, politicamente, como conservador e nem levante bandeiras desse segmento, Pazolini conta com parte significativa desse eleitorado em sua base de apoio.

Sem a manifestação, a prefeitura “lava as mãos” e tira, momentaneamente, de seus ombros o bônus e o ônus do projeto. Cabe à prefeitura aplicar o projeto quando este virar lei. Mas se vai aplicar e como, aí já são outros quinhentos.

O projeto

O pastor Nelson Junior – que será convidado para estar na Câmara de Vitória amanhã (17), para a promulgação do projeto de Davi – é o criador do ministério e movimento “Eu escolhi esperar”, que tem como objetivo pregar a pureza, a abstinência e incentivar jovens a esperarem até o casamento para iniciar a vida sexual, usando como base argumentos bíblicos e o ensino de ser pecado o sexo antes da aliança matrimonial. O movimento começou nas igrejas, contando, principalmente, com adeptos evangélicos. Foi para as redes sociais e hoje é propagado por meio de palestras e de um instituto.

Davi é autor do projeto

O projeto de Davi é baseado no programa, que dá nome ao projeto, e tem como objetivo reduzir o índice de gravidez na adolescência. O projeto seria desenvolvido nas unidades de saúde e nas escolas, com palestras, e permite que escolas celebrem “acordos de cooperação e parcerias” com unidades de saúde, ONGs e outras entidades afins, o que abre espaço para igrejas.

Porém, o projeto não explica de que forma seriam as palestras, quem as ministraria, qual material ou conteúdo seriam aplicados e quais argumentos usados para convencer os adolescentes a adotarem a abstinência sexual. Nas igrejas, o programa “Eu escolhi esperar” utiliza a Bíblia para orientar os jovens, partindo do princípio que é preciso crer nos ensinamentos bíblicos para que o programa faça sentido.

“Estamos falando para adolescentes. Vamos dizer que eles podem esperar um tempo de maturação do organismo, que esperar é uma opção diante da pressão do mundo, das pessoas, pela iniciação sexual precoce. Vai ser mais um método, uma opção a ser ensinada. Os métodos usados até hoje não têm sido suficientes para evitar que adolescentes fiquem grávidas”, disse Davi, que justificou que o programa de abstinência sexual é eficaz. Não há no projeto, porém, nenhum estudo de caso ou dados que mostrem a eficácia do programa. “É eficaz porque quem não faz sexo não engravida”, argumentou Davi. A questão, porém, é como aferir a causalidade, ou seja, se o índice de gravidez na adolescência aumentar ou reduzir daqui a algum tempo, como fazer um link com o programa? O projeto não responde.

Questionado se a Bíblia seria usada para as palestras nas escolas e se essa possibilidade não feria o estado laico e o respeito ao direito constitucional de estudantes de crer ou não na Bíblia, Davi respondeu: “Não fere o estado laico porque não está sendo obrigado, é uma opção que se oferece. A Bíblia está em plena sintonia com a Biologia. A Bíblia tem inspirado tudo, ao longo do tempo e da história, e inspira o projeto. Mas o projeto não se limita à Bíblia”, disse Davi.

O projeto diz, no artigo 4º, que “as despesas decorrentes da execução desta lei correrão por conta de dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessárias”, mas não apresenta nenhum estudo do impacto financeiro que vai gerar nos cofres da prefeitura.

“Os números são alarmantes e mostram consequências cruéis da gravidez da adolescência, como abandono dos estudos, frustração na família. Estamos apresentando algo diferente, para que a somatória dos métodos usados possam resultar na redução desses números”, disse Davi.

Índice

Dados da plataforma DataSus, do governo federal, mostram que, em 2019 (último ano com dados disponíveis), o Espírito Santo registrou 7.266 partos de nascidos vivos de meninas de 10 a 19 anos, sendo que desses, 281 foram em crianças e adolescentes de 10 a 14 anos.

Entre os 78 municípios, Vitória está em 4º lugar no ranking com o maior número de partos em crianças e adolescentes. Foram registrados 28 partos em meninas de 10 a 14 anos, e 413 nas de 15 a 19 anos – total de 441 partos.

Embora preocupante, o número total de nascidos vivos em 2019 ainda é 6,5% menor que o registrado no ano anterior (2018), quando nasceram 7.774 bebês de meninas de 10 a 19 anos. Vitória registrou 488 – 9,6% a mais do que em 2019. O número de partos, porém, pode ser maior, uma vez que esse dado se refere apenas aos nascidos vivos.

Segundo um estudo realizado pela Comissão Nacional Especializada em Ginecologia Infanto Puberal da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), de 2000 a 2019, o Brasil registrou queda de 37,2% no número de adolescentes grávidas. O estudo foi compartilhado pela Agência Brasil – agência pública de notícias.

A pesquisa foi feita considerando o número de nascidos vivos (NV) de mães entre 10 e 19 anos de idade. Em 2000, segundo a pesquisa, as mães adolescentes foram responsáveis por 23,4% do total de nascidos vivos no país. Já em 2019, esse índice passou para 14,7%. Apesar da queda, dados do DataSUS/Sinasc apontam que a cada dia ocorrem cerca de 1.150 nascimentos de filhos de adolescentes.

Futuro político?

O pastor Nelson Júnior tem sido sondado por partidos para se filiar e disputar uma vaga ao Congresso em outubro deste ano. Pelo menos duas legendas já teriam oferecido a vaga de Senado ao líder religioso.

E o “Escola sem Partido”?

O movimento “Escola sem Partido”, outra bandeira abraçada pelo presidente da Câmara, Davi Esmael, tem em sua origem o fundamento da escola ser um espaço neutro, sem doutrinação política, ideológica e religiosa. Sem favorecer uma religião e nem pregar o discurso antirreligioso. Uma política pública, a ser aplicada nas escolas, baseada na crença de uma religião, não fere a essência do Escola sem Partido?