Deputado quer transformar clube de tiro em instituição de utilidade pública: “Faz filantropia”

Clube de Tiro de Cachoeiro / crédito: Facebook

Tramita na Assembleia Legislativa projeto do deputado Wellington Callegari (PL) que concede ao Clube de Tiro de Cachoeiro de Itapemirim o título de utilidade pública, sob o argumento de que a instituição tem “natureza filantrópica”. Com esse título, o clube pode receber benefícios fiscais e repasses de recursos públicos, principalmente emendas parlamentares.

O projeto de lei 762/2023 foi lido na sessão desta segunda-feira (18) na Assembleia. Ele acrescenta item ao anexo único da Lei nº 10.976/2019, declarando de utilidade pública o clube localizado no Sul do Estado.

Na justificativa, o deputado diz que se trata de uma “associação de natureza privada, com cunho desportivo-amadorista, que visa proporcionar aos seus associados não somente a prática segura e legal do esporte de tiro, mas também a formação responsável e consciente no uso e manuseio de armas de fogo”.

Em outro trecho, diz que “a referida entidade está em pleno e regular funcionamento desde o ano de 2019, cumprindo todas as exigências legais sobre a regulamentação de declaração de utilidade pública para entidade de natureza filantrópica”.

Ao ser questionado sobre que tipo de trabalho filantrópico o clube de tiro prestava à sociedade, o deputado informou, por meio de sua assessoria, que o clube cede o espaço para que agentes de segurança do Estado treinem tiro, de graça.

“Todos os órgãos da segurança pública utilizam o clube de tiro de Cachoeiro (Polícia Federal, Polícia Militar, Polícia Civil, Guarda Municipal, e etc) para treinamento e aperfeiçoamento da sua profissão, visando atender e proteger a sociedade. O clube já foi reconhecido como utilidade pública pelo município de Cachoeiro, por seus relevantes serviços prestados. Detalhe, não é cobrado absolutamente nada”, informou, por meio de nota.

Sobre o clube poder receber emendas parlamentares após se tornar uma entidade de utilidade pública e se o deputado teria intenção de fazer indicações, a assessoria respondeu: “Até o momento não existe esse provisionamento. Contudo, caso o clube esteja habilitado a receber, nada impede. Óbvio, existem outras prioridades”.

Callegari / crédito: Ales

Após a leitura na sessão, o projeto foi encaminhado para a Procuradoria da Ales e para as comissões temáticas, que darão parecer pela constitucionalidade ou não. Tendo passe livre na Procuradoria e nas comissões, vai à votação no plenário e depois para a sanção ou veto do governador. Procurada, a assessoria da Assembleia disse que ainda não havia parecer jurídico sobre o projeto.

“Clubes de tiros são muito visados pelo novo governo”

Frederic Decatoire, que atendeu o telefone de contato do Clube de Tiro de Cachoeiro e se identificou como diretor social, afirmou que o clube abre as portas para os agentes de segurança treinarem sem pagar nada. Quem não é policial, porém, precisa pagar uma anuidade que vai de R$ 1 mil a R$ 1.200, para se tornar sócio e praticar tiros no clube.

“Nosso clube é uma instituição sem fins lucrativos. Aí tem que ser filiado para poder atirar. As forças policiais, de segurança, não pagam para treinarem no nosso clube”, disse Frederic que é francês naturalizado brasileiro, ex-militar da Legião Estrangeira Francesa.

Ele contou que policiais da PM, da Polícia Civil e da Polícia Federal treinam no clube, além de agentes da Guarda e da Sejus. E que até o Exército já chegou a treinar no local. “Vão de maneira institucional e particular também”. Fred disse não contar com nenhum tipo de convênio com o governo do Estado.

Questionado sobre o motivo de querer se tornar uma entidade de utilidade pública, disse que o título seria importante, principalmente por conta do “novo governo” – leia-se, governo Lula.

No final de julho, durante uma entrevista, o presidente Lula disse querer fechar quase todos os clubes de tiros. “Tem uma meia dúzia de pessoas que querem (abrir clubes de tiro), não vamos abrir. Eu, sinceramente, não acho que o empresário que tem um lugar de praticar tiro é um empresário. E já disse para o Flávio Dino, nós temos que fechar quase todos, só deixar aberto aqueles que são da Polícia Militar e do Exército ou da Polícia Civil”, disse Lula no programa semanal “Conversa com o Presidente”, transmitido pelo Canal Gov.

“A gente gostaria de ter esse reconhecimento. A gente já tem o título de utilidade pública municipal, acho que desde 1999. Gostaríamos de ter esse agora, porque atualmente é muita insegurança. Os clubes de tiro são muito visados pelo novo governo. Então, ter um documento desse para nós é bom. O clube é muito orientado pelo esporte, em cima do IPSC”, disse Fred.

IPSC é a sigla para “International Practical Shooting Confederation”, em tradução livre: Confederação Internacional de Tiro Prático. É uma das maiores, ou a maior, associação de tiro desportivo do mundo.

Ele disse que o clube já sediou eventos estaduais e nacionais e que o valor pago pelos associados é para manter a estrutura. “O clube não tem um instrutor em si. A anuidade é para manter nossa estrutura mesmo: água, internet, energia. É um clube pequeno, são menos de 100 sócios ativos”, explicou.

Treinamento de agentes da Guarda no clube de tiro / crédito: Facebook

O que diz a lei?

O deputado Callegari citou a lei estadual 10.976 como base para o projeto que declara o Clube de Tiro de Cachoeiro como entidade de utilidade pública. Essa lei, publicada em 2019, consolida a legislação em vigor referente à declaração de utilidade pública no âmbito do Estado.

O artigo 3º diz que “poderão ser declaradas de utilidade pública estadual, por iniciativa de qualquer membro da Assembleia Legislativa do Estado do Espírito Santo, as entidades constituídas na forma de pessoas jurídicas de direito privado, com fins não econômicos, que desenvolvam no âmbito do Estado atividades de interesse coletivo, com o objetivo de promover: (…) V – a prática gratuita de esportes; (…) VII – o voluntariado e a filantropia”.

Outras atividades são citadas, mas essas fazem alusão à justificativa do projeto de Callegari, que afirma que o clube tem cunho desportivo e faz atividades filantrópicas.

O parágrafo único da lei diz: “As entidades deverão prestar serviços de natureza relevante e de notório caráter comunitário e social, concorrentes ou complementares com aqueles prestados pelo Estado”.

A questão é que para ser considerado filantrópico, pelo termo legal, a entidade deveria desenvolver atividades de saúde, educação ou assistência social, segundo explicou a consultora e mestre em Políticas Públicas Ana Cláudia Simões. Sócia-diretora da Ativo Consultoria, Ana atua há mais de 20 anos com consultorias para o Terceiro Setor.

“Para ter certificado beneficente de filantropia só pode se for atividade de assistência social, saúde ou educação, porque há uma lei federal que determina esses critérios e conceitos. Porém, as pessoas que não são especializadas no assunto, chamam de filantropia aquilo que se faz sem fins lucrativos, não necessariamente dentro do conceito legal, mas num sentido mais amplo”.

Ela também explicou que o certificado da lei 10.976, que é a declaração da utilidade pública estadual, é um critério para o recebimento de emendas parlamentares, mas que não necessariamente uma instituição necessita desse certificado para receber outros recursos públicos.

“Qualquer entidade sem fins lucrativos, de natureza jurídica de fundação ou associação, dependendo da leitura de mais documentos, estatuto, Cnae, tempo de existência, se estiver adequada à Lei número 13.019/2014, que é o Marco Regulatório do Terceiro Setor, estará apta a receber recursos. As instituições podem concorrer a termos de colaboração ou a termos de fomento, que são as formas do recurso público ser repassado para a instituição, seja pelo estado, pela União ou pelos municípios”.

No caso específico do clube de tiro, a consultora disse que embora o clube não se enquadre, legalmente, como uma instituição filantrópica, ele pode requerer repasses de recursos públicos caso consiga fazer um projeto em que fique provado que a instituição tem utilidade pública.

“Se o projeto descrever que, gratuitamente, os agentes de segurança pública usam espaço, armamento, estrutura, o clube pode alegar que é de utilidade pública porque segurança pública interessa a todo mundo”, exemplificou.

Já o presidente da Fundaes (Federação das Fundações e Associações do Espírito Santo), Robson Melo, ao ser questionado se um clube de tiro pode ser considerado uma entidade filantrópica, se limitou a falar sobre a Fundaes e disse que clubes, associação de moradores e partidos políticos não fazem parte da federação que representa o Terceiro Setor capixaba.

“É uma questão muito ideológica e eu como presidente da Federação não posso e nem devo entrar numa discussão dessa natureza. É muito estranha uma situação como essa. A Fundaes é uma federação que congrega entidades de fins públicos, sem visar lucro. O nosso espectro é a assistência social a crianças, jovens, idosos, com atendimento em educação, defesa do meio ambiente, promoção da saúde, defesa de direitos humanos. É de uma coletividade muito grande. Então, a Fundaes congrega esse tipo de entidade”, relatou Robson.

Outros especialistas ouvidos pela coluna sob reserva disseram também que apenas numa interpretação bastante elástica da lei federal da filantropia (LC 187/2021) é que um clube de tiro conseguiria ser enquadrado como entidade filantrópica.

Em tempo: O que dizem os secretários

Procurados para se manifestarem a respeito da participação gratuita de agentes de segurança num clube particular para treinar tiro, o secretário da Justiça, André Garcia, e o secretário da Segurança Pública, coronel Alexandre Ramalho, disseram não ter conhecimento.

Em tempo II: tem precedente

No ano de 2000, o então governador José Ignácio Ferreira sancionou projeto aprovado na Assembleia Legislativa que declarava ser de utilidade pública a Federação Espírito-Santense de Tiro Prático, localizada em Vitória.

 

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