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"Cães Errantes" mostra o cotidiano de sem-teto

São Paulo - Cães Errantes, de Tsai Ming Liang (Taiwan), ganhou o Grande Prêmio do Júri no Festival de Veneza do ano passado. Esteve cotado para faturar o troféu maior, o Leão de Ouro, mas ficou com uma bela compensação, em todo caso.

O filme de Ming Liang dividiu crítica e público na Europa - e não há motivo para pensar que no Brasil seja diferente. Seu estilo é muito particular. De uma beleza pungente, para quem gosta; tedioso, para quem joga no outro time.

A polêmica se baseia, em especial, na duração dos planos de Ming Liang. Ele é capaz de fazer uma mesma cena, praticamente fixa, durar seis, sete, até doze minutos. Há quem ache insuportável; outros pensam que atinge o sublime. Não se pode legislar sobre esse tipo de coisa e cada um realiza sua experiência de um filme segundo suas expectativas, a formação que teve, o momento, etc. Trata-se de algo subjetivo.

Do ponto de vista do autor, existem as razões internas. Ming Liang pretende retratar a vida dos deserdados da sorte, mas sem usar os clichês habituais nesse tipo de assunto. Por um lado, não curte o miserabilismo, por outro, evita poetizar a pobreza. Coloca-a em sua concretude brutal. Por exemplo, no início, vemos uma mulher num quarto em ruínas, no qual dormem duas crianças. A cena se estende, os movimentos no interior do quadro são poucos e é como se o espectador fosse convidado a partilhar aquela experiência de desolação.

De certa forma, o cinema de Tsai Ming Liang (que já ganhou um Leão de Ouro com Vive L'Amour), é uma negação da narrativa. A "trama" de Cães Errantes é um fio e pode ser descrita em poucas frases. Um homem vaga por Taipé com seus dois filhos. Moram numa casa desocupada. O pai tenta ganhar uns trocados como homem-sanduíche, aqueles outdoors humanos que "vestem" o anúncio. As crianças alimentam-se de amostras de produtos em supermercados e lavam-se em banheiros públicos. Às tantas, entra em cena uma mulher, que poderá significar alguma coisa para aquela família. E é isso. Poderia ser apenas um documentário sobre a pobreza, um testemunho de como se viram as pessoas em situação de rua.

Essa seria a abordagem banal. Na proposta de Tsai Ming Liang, para desenvolver uma empatia com o personagem não basta você ter uma visão de como ele vive. É preciso que sinta um pouco, em sua pele, o que passam aquelas pessoas. Vale dizer: trata-se de um cinema que aposta bastante no sensorial, na capacidade de transmitir sensações que "ultrapassam" os limites da imagem e do som. Ora, mas estes são os materiais de que dispõe o cineasta - imagens e sons. E para que o material audiovisual seja tão incisivo quanto deseja, Tsai Ming Liang mexe no quê? Na duração. Faz as cenas se alongarem mais do se espera e, com esse recurso, potencializa sua intensidade.

O trabalho sonoro é notável. Há uma cena impactante, que põe em primeiro plano dois homens-sanduíche anunciando seus produtos sob chuva e vento intensos. Eles tentam, em vão, se abrigar sob um marquise, mas o vento sopra, carrega a chuva, e o ruído produzido por suas capas de plástico produzem tamanha sensação de desconforto físico que é como se estivéssemos lá, no lugar dos personagens.

Daí o equívoco em considerar a arte de Ming Liang mera "instalação", como às vezes se diz. Como se fosse apenas "estética", formal e aparente, sem qualquer tipo de conteúdo particular. O filme indica o contrário. Trabalha em linguagem original um tema recorrente - o das disparidades sociais extremas e de como sobrevivem os que se encontram na base da pirâmide. A questão já não é mais a de comparar quem tem muito com quem tem pouco, mas de mostrar os que nada têm. Mas nada mesmo, nem mesmo um teto para morar. Cada dia é uma luta em busca do alimento e se encerra sem qualquer perspectiva para o dia seguinte. Isso cria uma mecânica de imediatismo e de falta de esperança.

No entanto, Tsai Ming Liang ainda tenta devassar o que vai pela alma de seus personagens. Mostrando que, ao contrário do que julga o vão preconceito social, há uma misteriosa vida espiritual que insiste em se manter. Nesse sentido, as manchas de uma parede em ruínas podem se transformar em estranho mural, que intriga e talvez inspire um dos personagens. A necessidade de transcendência independe da fome, parece nos dizer esse esteta dotado de consciência social. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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