Geral

"Somos uma família e ninguém pode dizer o contrário", diz analista sobre união homoafetiva

Analista de pesquisa e coordenador de inovação relatam a história de amor; casal é exemplo de união estável registrada no Estado em 2021. Desde decisão do STF, o número cresceu no Espírito Santo

Marcelo Pereira

Redação Folha Vitória
Foto: Reprodução/Arquivo Pessoal
João Lucas (esquerda) e Thales Dias celebraram o amor de um pelo outro através de união estável

Um encontro casual com direito a beijo roubado no Bar da Zilda, em Vitória, foi o pontapé inicial da relação de amor entre o analista de pesquisa João Lucas Cortes, 30 anos, e o coordenador de inovação Thales Dias, 26. 

O casal, que mora na capital, oficializou e celebrou sua união estável em novembro deste ano. "A gente namora desde junho de 2019 e ficamos noivos em dezembro de 2020. Optamos pela união estável porque, em termos cartoriais, o casamento iria demandar mais tempo. Mas já colocamos a transformação da união civil em casamento como meta para 2023", planeja Cortes. 

Os dois fazem parte do universo de casais homoafetivos que resolveram oficializar seu amor, num movimento crescente a partir da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que, há 10 anos, decidiu a favor da união estável de casais gays. Em 2013, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou uma resolução que ampliou a decisão para todo o país e exigiu que os cartórios realizassem os casamentos entre pessoas do mesmo sexo.  

O Folha Vitória fez um levantamento junto à Associação dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen), até novembro deste ano. Nele, ficou comprovado que o país vai viver um boom dessas uniões. Os casamentos homoafetivos no Brasil chegaram a 9623 cerimônias contra 8536 no ano passado. Já as uniões estáveis até novembro deste ano foram de 2149. No ano anterior, foram de 2182.

O Espírito Santo também segue essa tendência crescente observada no país. Até novembro deste ano, foram 287 casamentos e 56 uniões estáveis. No ano passado, foram 253 casamentos e 47 uniões estáveis. Ou seja, a marca de 2020, tanto à nível de Brasil como de Espírito Santo, já foi superada.

A reportagem entrevistou um casal de homens e outro de mulheres para que eles contassem suas histórias e o que levou a decidirem sobre o registro na Justiça. 

A história de João e Thales passou por desafios de um namoro à distância (Dias é de Goiânia e atualmente trabalha em São Paulo, mas está em home office em Vitória) e enfrentou as incertezas de uma pandemia mundial (ambos fizeram o "test drive" de morarem sob o mesmo teto juntos durante a fase de isolamento social). Tiveram altos e baixos como qualquer casal, mas o cotidiano sinalizava que os dois tinham mais é que ficarem juntos.

Foto: Foto: Reprodução/ Arquivo Pessoal
União estável foi celebrada em cartório em novembro de 2021

Os rapazes veem na união estável a consolidação do amor entre ambos e também um ato político. 

"É importante a gente mostrar que, sim, somos um casal. E oficializar isso em cartório, a vista de todo mundo, sob a ótica da Justiça, é símbolo da conquista dos direitos LGBT e uma homenagem a tantos que, antes de nós, sofreram por lutar por esses direitos. Mas temos muito o que avançar e muito que lutar para não retroceder", explica o analista de pesquisa, se referindo ao atual governo do presidente Jair Bolsonaro, conhecido por ser hostil à expansão de direitos da população LGBTQIA+. "Somos parceiros e família um do outro. E ninguém pode dizer o contrário", reforça Cortes.

"No passado, era crime casamento entre pessoas de cores diferentes, assim como um tempo atrás era crime pessoas do mesmo sexo casarem. Estamos caminhando e nossa união é a celebração pública e reconhecida do nosso amor, assim como a vida dos que não puderam desfrutar desta conquista", complementa o marido de Cortes.

 Leia os relatos dessa trajetória do namoro até a união estável: 

João Lucas Cortes de Sousa, 30 anos, analista de pesquisa

O bar da Zilda, no centro de Vitória, sempre foi meu ponto de encontro predileto. Bastava meia ligação e eu já estava lá, com o litrão na mão e tentando ter o samba no pé. O sábado, dia 11/05/2019, não foi diferente. Uma amiga me ligou e eu fui ao encontro dela.
Thales é de Goiânia e naquela época veio para o Espírito Santo para trabalhar como trainee em gestão pública, no Governo do Estado. Naquele dia foi com amigos do trabalho, a maioria de outros estados, curtir o samba da Zilda.

Música tocando, Thales lá na frente do palco com os amigos dele e eu um pouco mais ao fundo com os meus. Foi quando trocamos os primeiros olhares e sorrisos.

Ele desaparece e logo depois o vejo entrando no bar, caminhando em minha direção. Eu paro, acompanhando a caminhada dele. Ele vem chegando perto e, sem trocarmos uma palavra, pá! Um beijo daqueles de tirar o fôlego. Logo depois, voltamos a dançar, cada um com seu grupo de amigos, sem nem ao menos trocar o nome ou uma palavra.
Lá pelas tantas, falei com minha amiga: "Vou procurar o boy que eu beijei". Nesse momento vi ele entrando no carro indo embora. E ele foi, sem antes a gente ter trocado o nome, telefone, nada. Somente aquele beijo sensacional. Ficamos com aquela sensação de quero mais. Mas, seria bem improvável.

Na terça seguinte, fui para minha sessão de terapia no bairro Jardim da Penha, em Vitória. Ao sair do atendimento, tive vontade de ir pegar o ônibus na praia. Não era comum eu fazer esse caminho. Teria que andar um bocado para chegar, mas, queria muito ver a praia antes do trabalho. O Thales, na época morava com um amigo em Jardim da Penha e todos os dias esperava o amigo para irem juntos para o trabalho (no edifício Fábio Ruschi, também no centro de Vitória). Mas, naquele dia, ele não quis esperar o amigo e disse: "Hoje vou mais cedo".

Peguei o ônibus para ir para o trabalho. Quando menos espero, três pontos depois, ainda na orla de Camburi, Thales entra no mesmo ônibus (Santo André, 211). Eu estava sentado no meio do ônibus e o vi passando na catraca e pensei: "Que coincidência" Ele me viu sentado, eu estava com terno e gravata (bem diferente da roupa para o samba). Ele também me viu. Mas, naquele primeiro momento, não nos falamos e nem nos encaramos. Thales, então, se sentou na última fileira do ônibus com seu livro, o “1984”, de George Orwell.

Reprodução/Arquivo Pessoal
Reprodução/Arquivo Pessoal
Reprodução/Arquivo Pessoal
Reprodução/Arquivo Pessoal
Na minha cabeça eu só pensava: "Preciso fazer alguma coisa para falar com ele". Ele, igualmente agoniado, e pensando em como fazer para falar comigo.
O ônibus começou a encher e uma senhora de idade entrou e eu ofereci o meu lugar para ela. Assim que fiquei em pé, avistei um banco vazio lá atrás, na frente do Thales. Me dirigi até lá, mas novamente não nos falamos. Fiquei pensando: "Será que ele lembra de mim? Será que ele gostou? Ele não falou nada até agora". 

Ele ficou na mesma página do livro durante todo o percurso, imaginando formas de falar comigo. Chegamos próximo ao centro de Vitória, a pessoa que estava sentada ao meu lado levanta para descer. Então, viro meu corpo para o lado para dar passagem para ela. Nesse momento, Thales fecha o livro, entende a mão e diz:

- Prazer, Thales!

Ah, que incrível! Dali em diante, começamos a conversa. Descemos no mesmo ponto, descobrimos que trabalhávamos no Governo e conversamos rapidinho. Thales então me convida para um almoço, para continuarmos a conversa. E assim, iniciamos essa relação tão linda.
Nós dois fomos criados com pais evangélicos. Desde pequenos nós dois participamos ativamente das atividades religiosas.

Eu demorei um pouco mais para conhecer, aceitar, assumir a minha sexualidade. Foi um processo doloroso e bastante solitário. Minha mãe, quando eu tinha 19 anos, mais ou menos, me perguntou se eu era gay. Fiquei bastante surpreso e com medo, mas como houve uma abertura dela para falar sobre o assunto, respondi afirmativamente a pergunta. 
Não foi fácil para ela ouvir o “sim”, mas mais pela pressão social que envolve, pela pressão religiosa da minha família e menor por ela. De início, ela pediu que eu não contasse para meus irmãos (10 anos mais novos) e para as outras pessoas. Mas, com o tempo, fui desmistificando as questões de gênero e sexualidade para ela e vi a aceitação crescendo. 

Hoje, toda a minha família sabe, respeita e convive de forma muito tranquila comigo, minha sexualidade e meu marido.
Em dezembro de 2020, eu tive um grave problema de saúde. Fui transferido para um hospital em São José do Calçado e o Thales foi comigo. Passamos uma semana no hospital. O Thales, trabalhou de lá, cuidou de mim e acalmou toda a minha família e amigos sobre a minha situação. Após a alta, voltando para Vitória de ônibus, Thales teve um gesto singelo e super simbólico: me pediu em casamento. Sim, dentro do ônibus, o mesmo local que nos reencontramos quando nos conhecemos. Claro, eu disse sim.

Casar sempre foi um sonho para mim. Pelo simbolismo, por representar uma construção de uma família (a mesma que muitas vezes ouvimos que era errado). Um ato político e social importante. Já dividimos sonhos, desejos, lutas. Somos parceiros e família um do outro. E ninguém pode dizer o contrário.

Conversamos sobre a união estável e percebemos que já estávamos em uma e por que não oficializar isso? Convidamos uma amiga do Thales de Goiânia, que atualmente trabalha no Governo de Minas para vir a Vitória. Eu convidei meu melhor amigo para serem nossas testemunhas. Um dia antes, também convidamos minha mãe para representar nossas famílias naquele momento. Queríamos que esse primeiro momento fosse nosso, algo íntimo. 

Quando divulgamos nas nossas redes sociais foi uma chuva de mensagens, amigos surpresos e felizes com a nossa decisão. Mensagens que nos fizeram ver que somos um casal com uma rede linda e grande de afetos sinceros e cheios de cumplicidade e amor.

Temos uma meta de até 2023 estarmos trabalhando e morando na mesma cidade. Temos vontade de adotar um cachorro em breve. E, quem sabe, num futuro, adotar uma criança (esse é um sonho que carrego bem grande). Já sobrevivemos à distância. Thales trabalhou no Governo de Minas Gerais e agora trabalha em São Paulo, mas continua morando em Vitória por conta do trabalho remoto. Nosso amor já passou por muitas coisas e permanece forte e unido.

Thales Luan Pereira Dias, 26 anos, coordenador de inovação

Eu sempre fui um homem de fé em Deus e no universo, mas permiti a religião me dominar e magoar por um tempo até me libertar e assumir. Não foi e não é um processo fácil, mas ele é fundamental e gratificantes todos os dias. A única certeza que tenho é que a escolha de me assumir, e não mais me esconder, valeu muito a pena. Sou muito feliz e estamos construindo uma vida linda juntos. Temos família, amigos e uma rede de apoio incríveis.

Leia também: 

>>>10 anos após decisão do STF, casamentos e uniões gays crescem no ES

>>>"Queremos constituir família e o Estado tem dever de garantir", diz advogada sobre casamento LGBT

Ser um homem gay não me resume, mas é uma parte fundante de quem eu sou. Nosso amor é particular, mas também público e legalmente reconhecido. Os preconceitos e barreiras são inúmeras, alguns acompanhados de retrocessos, mas temos vencido batalhas. No passado, era crime casamento entre pessoas de cores diferentes, assim como um tempo atrás era crime pessoas do mesmo sexo casarem. Estamos caminhando e nossa união é a celebração pública e reconhecida do nosso amor, assim como a vida dos que não puderam desfrutar desta conquista.

Conheci João na Zilda, depois de uma visita difícil em casa, em Goiânia, daquelas que dá vontade de ficar. Conhecê-lo naquele dia foi um presente. Mesmo nos desencontrando, o universo se encarregou de cruzar nossos caminhos em meio a uma sucessão de coincidências ou destinos. Desde então namoramos, moramos juntos, namoramos à distância, perdemos pessoas, ganhamos novas e agora nos unimos legalmente. Temos mais futuro que passado. 
Pontos moeda